Na atualidade, comumente é noticiado algum caso de crime cometido em alguma cidade brasileira cujo autor sai impune. Pois bem, essa característica nefasta de nossa sociedade não é algo recente. A prática da impunidade remonta à época da colonização. A impunidade colonial estava relacionada com a atmosfera das precárias organizações administrativas do Brasil Colônia, principalmente no que se referia à aplicação do código penal e ao hábito de “absolver” algum culpado por este ter promovido algo de “benéfico” para alguma capitania, como veremos em um exemplo mais adiante.
A legislação criminal que a metrópole lusitana aplicava às suas colônias, incluindo o Brasil, era baseada no Livro V das Ordenações Filipinas. Nas penas prescritas por ele estavam previstas a pena capital (isto é, a morte) e o degredo (exílio). Entretanto, como apontam vários historiadores, dentre eles Maria José e Arno Wehling, no Brasil Colônia, não havia rigidez alguma na aplicação dessas penas aos criminosos daqui. E, quando a pena era imputada, o apenado geralmente não chegava a cumpri-la integralmente. Desse modo, vários indivíduos que foram condenados ao degredo e encaminhados para Angola, por exemplo, voltavam antes que o prazo da pena chegasse ao fim.
Ademais, os crimes cometidos no Brasil dos séculos XVII e XVIII atingiam um grande número, haja vista a proporção entre ocorrências delituosas e o número de pessoas que habitavam as capitanias. Crimes cruentos, como o de homicídio, eram comumente praticados na colônia. Os pesquisadores citados, Maria e Arno Wehling, deixaram registrado em sua obra A formação do Brasil Colonial que:
“Um viajante do século XVIII comentou que o Brasil era o lugar do mundo onde se matava por encomenda a preços mais baratos, sendo aliás comum a contratação de escravos para matar rivais e desafetos. Nas Minas Gerais setecentistas houve, durante certo tempo, cerca de oitenta escravos legalmente executados por ano, acusados de homicídio. Apesar disso, cronistas e viajantes comentam com frequência sobre grande impunidade que existia no país, inclusive pelo uso frequente do crime à traição, de emboscada.” (Wehling, Arno; Wehling, Maria José C. De M. A formação do Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994. p. 267.)
Um caso famoso de impunidade datado do século XVIII é a participação do bandeirante Borba Gato no assassinato do tenente-general Dom Rodrigo de Castelo Branco. Borba Gato saiu impune desse crime por ter sido o descobridor das minas de Sabará. Como dito em nosso primeiro parágrafo, a “utilidade” ou “benefício” que a descoberta das referidas minas proporcionou à economia colonial garantiu também ao referido bandeirante a isenção de culpa naquele crime.
O bandeirante Borba Gato saiu impune de um crime por ter sido responsável pela descoberta das minas de ouro de Sabará
Arno e Maria Vehling ainda destacaram que os principais crimes cometidos nessa época eram: “contrabando, furto, roubo, concubinato, bigamia, ligações com quilombos, prostituição, falsificação de moeda, deserção dos regimentos militares, feitiçaria e crimes passionais. Esses últimos merecem registro especial pela sua extensão e consequências.” (Wehling, Arno; Wehling, Maria José C. De M. A formação do Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994. p. 267.)
Os crimes passionais eram recorrentes sobretudo nas cidades de Salvador (então capital) e Rio de Janeiro. Era permitido ao homem “lavar sua honra com sangue” em caso de traição (geralmente suspeita de traição) da esposa. Essa peculiaridade legal estimulava ainda mais a quantidade de crimes cometidos. Era nessas cidades também onde ocorria a maior parte dos crimes da colônia, apesar de outras cidades registrarem altos índices também, como São Vicente, que, em 1613, comportava uma proporção de 65 foragidos da lei para cada grupo de 190 moradores.
*Créditos da imagem: Commons
**Créditos da imagem: Commons